Que mal tem?

Uso indiscriminado de medicamentos traz inúmeros malefícios à saúde e pode levar à morte. Conscientização sobre os perigos dessa prática é a arma para combater e erradicar o problema

Em uma feira livre, é comum que a sacola de compras venha muito mais carregada do que a previsão inicial, afinal há sempre aquele agrado do feirante, ou ainda, um preço mais atrativo que o faz adquirir mais alimentos do que o necessário, certo? 

Na farmácia, isso não pode acontecer. Nunca. Mas acontece. É comum que os clientes adquiram medicamentos sem a orientação de um farmacêutico apenas pelo fato “de que seu amigo tomou”, ou ainda “é o que existe de mais moderno para enxaqueca, dor de estômago, cólicas, etc.”, ou pior: “está em promoção”. 

Esses mesmos consumidores parecem esquecer-se de que medicamento incorreto também mata, e o que era para ser a tábua de salvação torna-se um calvário que compromete a saúde, colocando-a em risco e, em muitos casos, levando a óbito.

O total de pessoas com agravantes em suas doenças ou até mesmo morte devido à intoxicação medicamentosa no Brasil chega a números preocupantes. Como apontam os dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aproximadamente 30% dos casos de intoxicação acontecem por uso indiscriminado de medicamentos, de forma errada ou aumento da dose por conta própria, sem orientação médica.

Como explica o farmacêutico José Liporage, que integra a Coordenação de Desenvolvimento Tecnológico (CDT) do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), e que foi o principal responsável pela estruturação da Farmácia do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI), então Instituto de Pesquisas Clínicas Evandro Chagas (Ipec), também da Fiocruz, o uso indevido de medicamentos é considerado um grave problema de saúde pública não só no Brasil, mas mundialmente. “Uma das consequências mais frequentes de atitudes como essas é a intoxicação pelo uso inadequado de medicamentos que, de acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), revelam que o percentual de internações hospitalares provocadas por reações adversas a medicamentos ultrapassa 10%”, ressalta.

De acordo com o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox/Fiocruz), somente em 2012, os medicamentos foram responsáveis por 27% dos casos de intoxicação registrados no País (e de plantas, mais 1,33%, que poderiam estar sendo usadas como medicamento). Os analgésicos, antitérmicos e anti-inflamatórios são os mais usados pela população sem o atendimento às recomendações de profissionais de saúde e, por isso, são também os que causam mais intoxicação. “No caso dos antibióticos, o uso de maneira inadequada ainda pode provocar a resistência ao paciente e para a sociedade atual e das futuras gerações”, alerta o farmacêutico.

A automedicação pode, ainda, agravar a doença, uma vez que a utilização inadequada de medicamentos pode mascarar alguns sintomas e fazer com que a doença evolua de forma mais grave. As interações medicamentosas, que são alterações nos efeitos de um medicamento em razão da ingestão simultânea de outro medicamento ou do consumo de determinado alimento (interações do tipo alimento-medicamento), podem aumentar, reduzir ou até cortar o efeito de um determinado medicamento e assim colocar em risco a vida ou a qualidade de vida do paciente. “Um exemplo é a utilização de antiácidos com outros medicamentos,o que reduz o efeito do outro medicamento”, explica Liporage.

Para o presidente do Conselho Regional de Farmácia do Rio de Janeiro (CRF-RJ), Marcus Athila, a automedicação é um problema muito grave em todas as camadas sociais de nossa cultura. “Entre as razões que levam o usuário a se automedicar, estão as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, indicações de familiares e amigos, autodiagnóstico na internet ou repetição de receitas já passadas, por conta de sintomas semelhantes”, lembra. “Por isso, devemos então estar atentos a todos esses pontos e atuar de forma preventiva, conscientizando o cidadão com campanhas periódicas e também deixar claro que a população sempre pode contar com a orientação de um profissional farmacêutico”, diz.

Automedicação x uso indiscriminado

O nutrólogo e pediatra do Hapvida, operadora de saúde do Norte e Nordeste, Dr. Marcelo Maranhão Filho, defende a importância de se diferenciar automedicação e uso indiscriminado. “Os dois são repreensíveis, mas o segundo pode estar relacionado a uma conduta profissional do médico”, ressalta.

A automedicação consiste na utilização de medicamentos por conta própria ou por indicação de pessoas não habilitadas para tratamento de doenças cujos sintomas são “percebidos” pelo usuário, mas sem a avaliação de um profissional de saúde. Já o uso indiscriminado está relacionado à “medicalização”, ou seja, uma forma de encontrar a cura para doenças e promover o bem-estar usando exclusivamente medicamentos, o que pode levar ao consumo excessivo e constante destes produtos.

Segundo a gerente da Secretaria Central das Comissões de Ética do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), Dra. Luciane Maria Ribeiro, o aumento significativo do consumo de medicamentos é uma consequência de diversos fatores, como a oferta de produtos farmacêuticos, o marketing da indústria farmacêutica, o grande número de medicamentos prescritos e a cultura da automedicação associados a fatores socioantropológicos, comportamentais e econômicos. 

Dados da OMS demonstram que há o Uso Racional de Medicamentos (URM) quando os pacientes recebem medicamentos apropriados para suas condições clínicas, em doses adequadas às suas necessidades individuais, por um período adequado e ao menor custo para si e à comunidade. 

“Sem dúvida, o farmacêutico tem um papel importante no acesso e promoção do URM, pois, por meio de sua atuação clínica, seja nas farmácias ou no ambiente hospitalar, pode promover o uso racional, de forma que os pacientes utilizem os medicamentos corretos na terapêutica e, deste modo, reduzindo os problemas relacionados com os medicamentos”, completa a Dra.Luciane.

Fatores que contribuem para a automedicação

• Dificuldades de acesso aos serviços de saúde;

• Indicações de familiares e amigos;

• Autodiagnóstico na internet ou repetição de receitas já passadas, por conta de sintomas semelhantes.

Fonte: Conselho Regional de Farmácia do Rio de Janeiro (CRF-RJ)

Mudança de cenário

A OMS revela que os percentuais de internações hospitalares provocadas por reações adversas a medicamentos ultrapassam 10%. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, nos últimos cinco anos, houve quase 60 mil internações por intoxicação causada pelo uso incorreto de medicamentos. O Sinitox aponta que os medicamentos (30,7%) estão entre as principais causas de intoxicação e, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ocupa o 1º lugar entre as registradas em todo o País, à frente dos produtos de limpeza, agrotóxicos e de alimentos estragados.

O CRF-RJ, junto aos farmacêuticos, está em ação para mudar este cenário. “Hoje, trabalhamos de forma permanente, alertando a população sobre os riscos da automedicação com campanhas sociais, durante todo ano, realizando ações sociais em locais de grande movimentação pública”, explica Athila. 

“Os farmacêuticos podem contribuir muito ao prestar a orientação farmacêutica e devem sempre chamar a atenção dos usuários para os perigos e graves riscos da automedicação”, finaliza.

Para Liporage, da Fiocruz, deveríamos ter uma assistência farmacêutica multiprofissional integral e humanizada em todas as esferas de serviços de saúde e desde o desenvolvimento do medicamento nos centros de pesquisa.“O medicamento deveria ser visto mundialmente como um direito da humanidade e com custos acessíveis a todos e com qualidade”, defende.

Ele lembra que, no mundo, os profissionais farmacêuticos estão entre as cinco profissões de maior confiança da sociedade mundial. Vale lembrar que, na Turquia, o farmacêutico é o profissional de maior confiança e, no Brasil, é o quinto conforme a última pesquisa realizada em 2014. 

“Além disso, a legislação que transformou a farmácia em estabelecimento de saúde (Lei 13.021/14) deve ser um avanço para o uso racional de medicamentos, como foi o controle dos antibióticos no País, que tornou obrigatória a retenção da receita. A educação sanitária dos medicamentos nas escolas deve também ser uma transformação para as próximas gerações.”

Para Liporage, o fato de o fracionamento dos medicamentos não ter se tornado uma realidade no País também contribui muito para o uso irracional de medicamentos. “A qualidade das prescrições e receitas precisa realmente ser melhorada em todos os aspectos no Brasil, assim como o investimento na melhoria da qualidade da formação dos profissionais de saúde.”

Na opinião da farmacêutica responsável do Hospital Santa Paula, Carla Fernandes, para se evitar efeitos indesejáveis com o uso de medicamentos, um conjunto de práticas deve ser seguido, como a escolha terapêutica adequada, considerando dose, posologia, contraindicações e possíveis reações adversas. 

“Pacientes que utilizam medicamentos ou alteram a posologia por conta própria, sem indicação médica ou farmacêutica, podem colocar a saúde em risco, pois o uso de uma dose maior do que a indicada pode levar a uma intoxicação que pode causar um leve desconforto ou até a morte”, explica.

Em contrapartida, o uso de uma dose menor do que a indicada pode piorar a doença, gerando consequências graves, porque o uso de uma dose menor de antibiótico ou a interrupção do tratamento antes do tempo indicado podem levar ao desenvolvimento de resistência bacteriana, piorando a infecção que está em tratamento.

Principais danos no uso indiscriminado de medicamentos

• Alergias;

• Hemorragias;

• Lesões no estômago;

• Danos em órgãos vitais (rins e fígado); 

• Pode, ainda, camuflar patologias mais graves, potencializar, inibir ou anular o efeito de outros medicamentos que já estejam sendo ministrados, além do risco de alguns medicamentos causarem dependência química e até o óbito;

• Outro fator ligado à automedicação é a interação com outros medicamentos, alimentos, bebidas e até os famosos chazinhos. Quem toma medicamentos por conta própria não sabe quais são as propriedades das substâncias que ingere e o quanto algumas combinações podem ser prejudiciais à saúde.

Fontes: Conselho Regional de Farmácia do Rio de Janeiro (CRF-RJ) e Hospital Santa Paul


Autor:
Tatiana Ferrador

Rastreabilidade

Edição 272 - 2015-07-01 Rastreabilidade

Essa matéria faz parte da Edição 272 da Revista Guia da Farmácia.

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