Excesso de judicializações preocupam autoridades

Cresce no País o número de pacientes que procuram a Justiça para garantir tratamento contra doenças sem cobertura do SUS ou dos planos de saúde. Excesso de judicializações preocupa as autoridades, mas pode ser a última esperança de vida de muitos brasileiros

A falta de tratamento para diversas doenças criou no Brasil uma dinâmica chamada de “Judicialização da Saúde”. Esse movimento consiste no paciente acessar os tribunais brasileiros para garantir o direito aos tratamentos de alto custo, pagos principalmente pelo estado ou pelos planos de saúde, que muitas vezes se isentam do fornecimento de alguns medicamentos ou procedimentos cirúrgicos e terapêuticos.

Mais comuns em casos de pacientes com alguns tipos raros de câncer e doenças autoimunes, esses processos têm chegado cada vez em maior número ao Poder Judiciário brasileiro, lotando os já abarrotados tribunais.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2011, tramitavam no País em torno de 241 mil processos de pessoas que recorreram aos tribunais para conseguir medicamentos e tratamentos de alto custo. No primeiro semestre de 2014, contudo, esse número saltou para 393 mil – um aumento de 63%.

Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro são os estados onde mais se concentram esses processos, segundo o CNJ. Nos cálculos do grupo de trabalho criado pelo órgão para analisar o assunto, o governo federal gastou, em 2014, em torno de R$ 843 milhões para atender a essas demandas judiciais por tratamentos. Em 2011, contudo, esse valor era bem menor, chegando em torno de R$ 221 milhões, número quatro vezes menor que o atual.

Para o advogado, especialista em Direito da Saúde e sócio do escritório ACJ Advogados Associados, Rodrigo Araújo, a crescente procura pelo sistema judiciário para ter acesso a tratamento médico decorre da má gestão dos recursos públicos pela União e pelos estados.

“O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece um serviço muito aquém das expectativas mínimas do cidadão. Agendar uma consulta com um especialista ou até mesmo um exame é tarefa árdua e exige meses de dedicação e insistência, sem garantia de efetivamente conseguir esse atendimento em tempo hábil. Há pacientes que não podem esperar meses para iniciar um tratamento sem sofrer consequências irreversíveis para a sua saúde e integridade física. Nenhum cidadão está disposto a ir à justiça e ajuizar uma ação se esta não fosse a última alternativa. Antes de recorrer ao Poder Judiciário, o cidadão procura outros meios administrativos para conseguir seu tratamento médico, mas esgotados os meios administrativos, é o Judiciário quem tem amparado esses pacientes para fazer valer seus direitos”, justifica Araújo.

Medicamento importado

No Brasil, a maior parte das ações diz respeito ao acesso a medicamentos importados e de alto custo, que não são fornecidos pelo SUS ou pelos convênios, e também de cirurgias de emergência não autorizadas por operadoras.

Segundo o Ministério da Saúde (MS), foram gastos, em 2014, em torno de R$ 314 milhões na compra de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), justamente para atender a essas demandas judiciais.

Por ser importados e pagos em moeda estrangeira, essa crescente judicialização tem alto impacto no orçamento da Saúde em todas as esferas do Estado brasileiro. O gasto total estimado que a União e os governos estaduais tiveram com demandas judiciais em 2014 superou o valor de R$ 1,2 bilhão, podendo chegar a R$ 1,7 bilhão neste ano, segundo estimativas do governo de São Paulo.

Só em São Paulo, a Secretaria Estadual da Saúde paulista gastou R$ 430 milhões com o cumprimento de ações judiciais no ano passado. Desse montante, R$ 56,2 milhões pagaram medicamentos importados ainda sem aprovação da Anvisa. O número total corresponde a mais de um terço de todo o dinheiro gasto pela pasta em assistência farmacêutica para a população de baixa renda em hospitais e unidades de saúde estaduais.

Casos mais recorrentes de ações contra:

O Sistema Único de Saúde (SUS)
• Medicamentos de alto custo;
• Exames de alta complexidade;
• Tratamentos oncológicos;
• Cirurgias de urgência e emergência.

Os planos de saúde
• Cobertura de procedimentos que não constam do rol mínimo da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS);
• Medicamentos de alto custo;
• Quimioterapia e radioterapia;
• Materiais utilizados em cirurgias;
• Carência para doenças que são consideradas pelos planos de saúde como preexistentes;
• Cirurgias e exames de alta complexidade.

Fonte: ACJ Advogados Associados

 

Na esfera federal, o gasto do MS com essas demandas judiciais foi de R$ 843 milhões em 2014, valor 500% superior ao gasto com o cumprimento de ações em 2010, quando esse montante era de apenas R$ 139 milhões.

Segundo o MS, ao menos R$ 258 milhões desses R$ 843 milhões foram usados para compra de apenas 11 tipos de medicamentos não registrados na Anvisa.

Reação das autoridades

O secretário de Saúde de São Paulo, David Uip, prevê que até o fim de 2015 essas despesas com ações judiciais cresçam para pelo menos R$ 700 milhões no estado. Em reunião do LIDE – Grupo de Líderes Empresariais – Uip afirmou que o excesso de judicializações pode inviabilizar as contas públicas e o orçamento da pasta.

“Por conta das ações judiciais, chegamos a ter de oferecer 69 tipos de fraldas. Tivemos uma ação judicial de R$ 20 milhões só para comprar medicamentos que vão atender 37 pessoas. Entendo o lado do juiz, mas ninguém pergunta se o estado tem essa verba para cobrir todas as ações judiciais concedidas”, declara o secretário.

A projeção do MS é de que, em 2015, as despesas com judicialização ultrapassem a cifra de R$ 900 milhões na esfera federal. Durante audiência pública na Câmara dos Deputados, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, também criticou o uso exacerbado do Poder Judiciário para, segundo ele, “desorganizar o sistema público de Saúde”.

“Não estou questionando o direito de cada brasileiro ir à Justiça garantir o seu acesso. Estou me insurgindo contra a utilização do Poder Judiciário para transformar o nosso País em uma plataforma para lançamento de medicamentos, insumos, órteses e próteses sem nenhum critério, produzindo profundas iniquidades no acesso da população à Saúde. Quando sou obrigado a comprar um medicamento em fase dois de teste na Itália por 400 mil dólares, o dinheiro vai fazer falta para centenas, para milhares de brasileiros que dependem daquele recurso. Isso é profundamente desorganizador. É o Poder Judiciário determinando como o Executivo vai utilizar seu orçamento”, criticou Chioro.

As declarações do ministro da Saúde convergem diretamente com um levantamento divulgado pelo estado de São Paulo, que afirma que dois terços das ações judiciais contra o SUS no estado são iniciadas por pessoas com convênios médicos particulares ou que frequentam clínicas privadas.

O estudo mostra que 65% das prescrições na origem dos processos partem de médicos particulares. “É uma situação complexa, quase uma espécie de Robin Hood às avessas, onde é tirado dos mais pobres para dar a quem tem condições de pagar por um bom advogado”, afirma Uip.

As críticas são endossadas pelo diretor do Centro Cochrane do Brasil, Dr. Álvaro Atallah. Há 25 anos, o Cochrane trabalha junto às autoridades judiciárias do País para levar e discutir o que de realmente viável existe no mundo em avanços medicinais. A ideia de difundir esse conhecimento científico é justamente para embasar as sentenças jurídicas de juízes e magistrados, separando o joio do trigo entre os inúmeros pedidos que chegam todos os dias ao Poder Judiciário.

O Dr. Atallah diz abertamente que certas judicializações servem interesses financeiros dos grandes fabricantes de medicamentos, que fazem lobby na Anvisa e no MS para ter seus medicamentos de alto custo incluídos no sistema de gratuidade.

“A judicialização de fato é um direito individual do cidadão, mas é preciso separar o que é realmente relevante ou não. Ela só existe porque a Medicina muda todo ano com novas descobertas, mas o Direito Público infelizmente passa por reforma a cada 70 anos. O que é preciso registrar, no entanto, são o interesse e o lobby de grandes empresas. Eles estão presentes não só nos corredores de Brasília, como também no meio médico. Os conselhos de medicina tentam combater, mas a última crise das próteses cirúrgicas está aí para mostrar que o Direito não pode ignorar esse conluio com certos profissionais da medicina pelo País”, afirma o Dr. Atallah.

Para Araújo, entretanto, as declarações do ministro e do secretário invertem o papel do Estado no problema, transformando em vilão apenas o cidadão que busca tratamento.

Documentos necessários para ingressar com ação contra:

O Sistema Único de Saúde (SUS)
• Registro Geral (RG) e Cadastro de Pessoas Físicas (CPF);
• Cartão SUS;
• Laudo de exames relacionados ao procedimento médico;
• Relatório médico atualizado com a descrição do quadro clínico do paciente, evolução clínica, prescrição do tratamento e justificativa;
• Documentos que demonstrem que o paciente procurou pelo atendimento;
• É recomendável que o paciente notifique, por escrito, as ouvidorias do SUS, com cópia para a Secretaria de Saúde.

Os planos de saúde
• Registro Geral (RG) e Cadastro de Pessoas Físicas (CPF);
• Comprovante de pagamento das últimas três mensalidades do plano de saúde;
• Cartão do plano de saúde;
• Contrato do plano de saúde;
• Laudo de exames relacionados com o procedimento médico;
• Relatório médico atualizado com a descrição do quadro clínico do paciente, evolução clínica, prescrição do tratamento e justificativa;
• Pedido de autorização do procedimento;
• Negativa de autorização emitida pelo plano de saúde (quando não for verbal).

Fonte: ACJ Advogados Associados

 

“O problema não é o excesso de ações, mas sim a má gestão da saúde no País. Não se pode aceitar uma inversão de papéis. A culpa do excesso de ações é da ineficiência do serviço. O cidadão que precisa agendar uma consulta chega às Unidades Básicas de Saúde (UBSs) – postos de saúde – às cinco da manhã e não sabe se conseguirá ser atendido pelo clínico geral. Se precisar de uma consulta com um especialista, a UBS irá encaminhá-lo para a UBS Especialistas e essa outra consulta pode levar mais de quatro meses para acontecer. Portanto, os tratamentos médicos autorizados por meio de medidas judiciais nada mais são do que os tratamentos médicos que deveriam ter sido oferecidos, sem resistência, pelo SUS e é para essa finalidade (garantia de atendimento médico) que o orçamento público deve servir”, declara o advogado.

Processo de espera

O tempo médio de um processo judicial da área de Saúde no Brasil é de cerca de dois ou três anos até a finalização total dos recursos, segundo os especialistas. Mas uma liminar de emergência pode sair em um ou dois meses, graças ao artigo 1.211-A do Código de Processo Civil, que assegura a prioridade na tramitação de processos para pacientes portadores de graves doenças.
Com a ajuda de entidades, como o Centro Cochrane do Brasil, por exemplo, alguns órgãos, como o Tribunal de Justiça de São Paulo, já contam com câmaras técnicas, onde representantes médicos fazem a análise de alguns processos mais complexos e até tentam conciliações, na tentativa de desafogar mais o sistema judicial.

A experiência está sendo replicada em vários estados e, segundo a advogada Rosana Chiavassa, que também é especialista em Direito da Saúde, já há mais resistência do Poder Judiciário no acolhimento de liminares para certos casos.

“O Poder Judiciário está mais criterioso, principalmente em casos de hepatites e cirurgias eletivas não emergenciais. A lógica é ‘quanto maior o risco de morte, mais célere a sentença ou a liminar’. Os juízes continuam sensíveis à vida, porque sabem que a judicialização, em diversos casos, é a única esperança para muitos pacientes. Mas claramente já há uma disposição em protelar casos que possam ser objeto de conciliação ou de adequação de tratamento dentro da realidade atual”, conta Rosana.

Para ela, a manutenção da vida está acima de qualquer orçamento público: “A atual situação de fato mostra que é preciso repensar a universalidade da saúde pública brasileira, assim como acontece em outros países. Os 300 mil processos atuais não representam nem 1% dos 150 milhões de brasileiros com direito ao tratamento digno pelo SUS, nem os 50 milhões que usam os planos de saúde. Para muitos pacientes, a judicialização é o fio de esperança que os prendem à vida. E enquanto juízes forem humanos, sentenças favoráveis à vida serão dadas. O contrário é a negação da humanidade do magistrado, e até de nós mesmos”, declara a advogada.

Por Rodrigo Rodrigues

Análise clínica

Edição 274 - 2015-09-01 Análise clínica

Essa matéria faz parte da Edição 274 da Revista Guia da Farmácia.

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