Farmácia na favela

Ousados e visionários, empresários, que investiram nas primeiras drogarias localizadas dentro de comunidades, agora colhem os frutos da ascensão da classe C em todo o País  

Com 12 milhões de habitantes, as favelas brasileiras movimentam anualmente cerca de R$ 68,3 bilhões, segundo números de uma recente pesquisa divulgada pelo Instituto Data Popular. De acordo com o levantamento, essas áreas carentes do País concentram em torno de 65% daqueles brasileiros que se convencionou chamar de “nova classe média”, grupo de consumo que, nos últimos anos, foi exaustivamente debatido e explorado por marcas e empresas do País.

Mas se por um lado os moradores das favelas brasileiras foram alvos de campanhas dos mais variados produtos, pouquíssimas foram as marcas e bandeiras que tiveram coragem de subir os morros e comunidades carentes do País, para estar fisicamente presente na vida dessas pessoas. Mesmo com todas as facilidades de crédito despejadas no mercado, poucos foram os empresários que até agora tiveram coragem de driblar o preconceito e o medo da violência para oferecer produtos e serviços a esses potenciais consumidores.

Projeto assertivo

No varejo farmacêutico, essa tarefa ainda está sob o comando de empresários independentes e visionários, que enxergam nesse grupo de brasileiros a oportunidade de prosperar nos negócios. É o caso de Milton Ferreira, de 52 anos, morador há quase duas décadas da favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. Ex-balconista de farmácia, em 2005, ele resolveu abrir a própria loja na comunidade onde mora com a família desde quando desembarcou em São Paulo. O plano inicial era trabalhar apenas com os dois filhos, aplicando os únicos R$ 15 mil que tinha guardado na poupança familiar para emergências.

Entretanto, o plano deu tão certo que, em menos de sete anos, Ferreira abriu outras duas lojas na comunidade de Paraisópolis, tornando-se a primeira rede forte da favela, que conta hoje com cerca de 110 mil habitantes, segundo a associação de moradores local.

“As pessoas pensam que na favela ou nas comunidades carentes só existe bandido. Esses são minoria. A maioria é de trabalhador honesto, que tem vontades e necessidades de comprar como qualquer morador de outros bairros”, diz Ferreira. “Quando você é parceiro da comunidade, passa a ser reconhecido como alguém que não quer só explorar, mas ajudar a melhorar a vida coletiva. Isso ajuda muito nos negócios”, revela o empresário.

Filho de pequenos comerciantes de Campina Grande, na Paraíba, Ferreira teve o primeiro contato com farmácia sendo faxineiro de uma loja da cidade natal. Ao chegar a São Paulo, arrumou um emprego de balconista em uma farmácia do Cambuci, zona sul da capital paulista, onde aprimorou os conhecimentos no ramo. Ao se mudar para Paraisópolis, viu o potencial que a comunidade tinha e aventurou-se na vida de empresário.

“Foi uma aposta arriscada, mas sabia que daria certo. As pessoas aqui não estão dispostas a sair para buscar longe alguns artigos de primeira necessidade. O pouco tempo que elas têm sobrando é para cuidar da casa e da família, não para pegar ônibus e ir a outro bairro comprar as coisas. Quem teve essa visão apostou e ganhou. Hoje, Paraisópolis é bem diferente de quando cheguei aqui. O comércio tem prosperado junto com as condições de vida da comunidade”, avalia o comerciante.

Da primeira loja em 2005 até hoje, Ferreira já soma três lojas abertas em Paraisópolis. A rede MTN Drogaria & Farmácia conta com dez funcionários, além dos dois filhos do empresário e ele mesmo, que trabalha diariamente das oito horas da manhã às 11 horas da noite.

A última unidade aberta por ele aconteceu em 2012 e exigiu de Ferreira um investimento de R$ 1,5 milhão, dos quais ele garante já ter faturado 80% do valor nesses anos de funcionamento. A estratégia dele para prosperar dentro de Paraisópolis foi criar o que o empresário tem orgulho de chamar de “fiado on-line”.

Seguindo o exemplo dos pais comerciantes na Paraíba, ele vendia produtos para os moradores da favela pagarem só no dia do recebimento do salário, ou dois meses depois. Foi o que, segundo ele, garante até hoje a clientela.

“Quase todo mundo que comprava fiado comigo no início da farmácia ainda compra hoje. E 95% deles pagam religiosamente tudo o que compraram. Acho que nem banco tem pagadores tão fiéis quanto os meus”, brinca Ferreira. “Os 5% que não pagavam, eu perdoava a dívida porque via que não havia condições deles pagarem. Fazia uma doação e eles percebiam que meu intuito não era ‘enricar’ (sic). Quando eles melhoram de condições, voltam a comprar comigo. É uma relação de solidariedade em que todo mundo ganha”, desabafa o orgulhoso Ferreira.

Hoje, o “fiado on-line” da MTN Drogaria & Farmácia virou um cartão fidelidade com mais de 20 mil clientes associados dentro de Paraisópolis. O empresário paraibano comemora a evolução do cartão fidelidade da loja e diz que, graças aos clientes fiéis, terá condições de já no ano que vem abrir a quarta loja na favela.

“Quem tem dinheiro tem medo dos pobres e da violência, mas até bandido sabe distinguir pessoas de bem daqueles que só querem tirar proveito das outras. Paraisópolis é onde evolui e daqui não saio nem fazendo macumba na encruzilhada”, brinca Ferreira, que ainda hoje é morador de Paraisópolis, mesmo já tendo adquirido um apartamento em outra região da cidade.

Estratégia benquista

Visão de oportunidade é o que levou também o empresário Lourenço Júnior a abrir uma farmácia na maior favela da América Latina, que fica no Rio de Janeiro. Com mais de 220 mil moradores, a Rocinha sempre foi alvo do noticiário policial em virtude dos conflitos entre traficantes e policiais. Desde 2012, contudo, a comunidade recebeu a 28ª Unidade de Polícia Pacificadora, a conhecida UPP, e viu florescer o comércio nas ladeiras por onde antes só se tinha notícia de tiros e mortes.

Dono de outras seis farmácias no Estado do Rio de Janeiro ao lado do pai, o empresário fluminense afirma que desde janeiro deste ano, quando abriu a loja na Rocinha, tem se surpreendido com a procura por produtos de alto valor agregado pela comunidade.

“Mês a mês, a loja da Rocinha tem crescido em vendas, mesmo com a crise. Quando abrimos a loja, procuramos uma bandeira de forte apelo popular achando que só os produtos de alto desconto sairiam. Mas tivemos de dobrar as encomendas, principalmente de produtos de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (HPC) e de valor agregado, como tinturas, cremes e itens para o cabelo. São produtos que estamos vendendo melhor na Rocinha do que na zona sul onde também estamos presentes”, diz Júnior.

O forte apelo de produtos de higiene pessoal e beleza também é observado pelo comerciante de Paraisópolis, em São Paulo. Segundo Ferreira, quase 70% das vendas dele na comunidade paulista são desses produtos.

O fenômeno pode ser explicado pela pesquisa Data Favela, criada pelo instituto Data Popular e a Central Única das Favelas (Cufa). De acordo com o levantamento, a porcentagem de moradores das favelas brasileiras que pertencem às classes A e B subiu de 3% para 7% desde 2013. Essa realidade cria um contingente de empreendedores dentro das comunidades carentes que não quer se equiparar com o asfalto.

“Na prática, a gente vê que a vontade empreendedora está fazendo surgir uma nova elite na favela, que não é mais apenas a elite do tráfico, da violência ou da criminalidade. É a nova elite do empreendedorismo. São os donos de padarias, farmácias e mercearias. Milhões de brasileiros que ganharam dinheiro, mas não querem sair da favela. Preferem ser os mais ricos entre os pobres, do que os mais pobres entre os ricos, em alguns casos, temendo até o preconceito nas áreas nobres”, disse o presidente do Data Popular e criador do Data Favela, Renato Meirelles.

Segundo o Data Favela, há dentro das comunidades famílias com renda de mais de R$ 5 mil, chegando até a R$ 20 mil por mês em alguns casos. Esse grupo ajuda a puxar o consumo de produtos de alto valor agregado para cima, de acordo com a pesquisa.

Essa elite dentro da favela, contudo, não é a única explicação de Meirelles para essa realidade de consumo das favelas. Para ele, as pessoas da favela buscam produtos que deem status a elas. São consumidores altamente impactados pelas propagandas e estratégias de marketing. “É um grupo que almeja as mesmas coisas vendidas nas áreas nobres, desde que caiba no valor da parcela que ele pode pagar todo o mês”, afirma Meirelles.

É de olho nesse contingente e no imenso mercado de consumo que algumas marcas já tentam se aproximar das comunidades carentes. Empresas, como Casas Bahia e Magazine Luiza, por exemplo, já se instalaram em Paraisópolis e na Rocinha. Os empresários acham que a entrada de grandes farmácias é também questão de tempo. Mas eles dizem não se assustar com a concorrência: “Nossa arma são os preços baixos e o boca a boca”, diz Júnior, da Rocinha. “Quando comecei aqui, só havia uma farmácia. Hoje, são sete concorrentes. Mesmo assim estou aqui, crescendo e evoluindo. O olho no olho e a cumplicidade com o morador da periferia não se aprende com palestrante. É esse o meu diferencial”, afirma Ferreira.

Autor: Rodrigo Rodrigues 

Alta do dólar

Edição 276 - 2015-11-01 Alta do dólar

Essa matéria faz parte da Edição 276 da Revista Guia da Farmácia.

Deixe um comentário